segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Povo da Fúria - Cap 3 - sequência 2


                O líder da Casa do Lobo estava tão aconchegado em suas peles no centro da cabana principal e tão absorto em seus sonhos que no momento em que os raios da manhã adentraram toda a construção e encheram de vida seu interior, ele simplesmente virou-se e afundou sua cara em meio as macias peles de cervo que faziam sua cama para reclamar pela escuridão novamente.
                Mulin sonhava com sua juventude, dos tempos em que corria pelas florestas e saltava pelas corredeiras e pequenas cascatas que se formavam nas encostas da montanhas próximas a vila. Relembrava grato dos momentos de batalhas, dos maravilhosos som de aço chocando-se com a carne de seus inimigos, e do belo corpo da bruxa que tivera que proteger. Ele podia ouvi-la chamando-o tão claramente que acabou saindo de seu sonho exclamando:
                - Sim minha senhora?
                Jurimik deu de ombros, todo desconcertado, com vontade de socar o amigo.
                - Do que me chamou? Se vê que está bêbado além da conta. – ralhou o taverneiro profundamente ofendido.
                Mulin se recobrando do vazio que se fizera entre os seus sonhos e a realidade, chacoalhou a cabeça e cobrindo-se jogou-se para trás na cama, como que se defendendo.
                - Jurimik – esbravejou.- o que faz aqui? Que horas são?
                - É cedo, mais cedo do que você costuma levantar. Ainda mais depois de uma noite como a de ontem. – por fim o taverneiro acabou por sentir-se mal por acordar o amigo tão cedo, mas ele precisava lhe falar. – Escute, preciso de um favor. O urso que Toul abateu. O que fizeram de sua pele?
                Mulin, estava irritado com o amigo, se sentia tonto e embrulhado, na verdade se encontrava verdadeiramente embriagado, pois a cerveja dos Rashemi, era uma bebida extremamente forte,  e dado a tudo o que consumira não havia tido tempo para recuperar-se totalmente. Ainda assim com a mente turva o chefe da Casa do Lobo estava curioso.
                - Fora curtida. Vai ser vendida. Porque? O que está pensando? Em sumir com o troféu de seu filho? – A última indagação soou quase como uma afirmação. Mulin sabia do desgosto de Jurimik em relação a noite anterior e sentia que talvez isso pudesse ter afetado o juízo normal de seu companheiro de batalha na juventude.
                - Não. Como você bem lembra sempre fui um excelente tanoeiro. Quero a pele, Mulin. Você tem que consegui-la para mim, sinto que preciso fazer algo para Toul antes que ele parta.
                O pedido do taverneiro saiu quase como se ele implorasse por algo inatingível.  Nesse momento o líder observou os olhos de seu amigo e viu que seu pedido era sincero. No entanto dar o troféu conquistado no campo de honra de uma batalha era algo questionável e com certeza não haveria quem na aldeia o acusasse de algum crime, mesmo sendo ele praticamente o líder da aldeia. Por isso ele precisava ter certezas da intenção de seu amigo.
                - Jurimik. Todos em Taporan sabem que você sempre foi averso a Toul se tornar um furioso de batalha, que ele galgasse seus próprios passos. Se eu lhe der esta pele vou ter que me explicar mais cedo ou mais tarde e se eu não souber de uma boa razão para lhe conceder um favor assim, isso será impraticável. A pele será vendida por pedido de seu próprio filho, que acredita que os comerciantes de Aglarond pagarão um bom preço por ela sabendo das condições da peleja. Jurimik eu não posso dá-la sem que me convença com um bom motivo, e nossa amizade não é um argumento aceitável.
                - Você não entendeu – replicou Jurimik, vendo que seu amigo não desconfiava de seu pedido. – quero usar a pele de urso para fazer um gibão para Toul. Você sabe que tipo de peça eu posso fazer.
                Este último apontamento arregalou os olhos de Mulin. Sim, ele sabia do que o pretenso taverneiro era capaz. Pois um dia o homem de barbas brancas, fora jovem, e ele como Mulin, já fora um bravo guerreiro. Diferentemente as circunstâncias do tempo e dos acontecimentos dividiram seus caminhos e hoje um deles continua a ostentar orgulhoso suas origens, enquanto o outro contenta-se por levar uma vida normal. Mas o taverneiro não era uma pessoa normal, embora muitos em Taporan expressassem desprezo por Jurimik ter abandonado os campos de batalha, muitos também já foram postos para fora de sua taverna quando exaltados, pelo próprio dono que diferente de outros estabelecimentos mantinha a ordem por conta de seus próprios braços e não por guardas ou mercenários contratados.
                O chefe da Casa do Lobo entendeu que o pedido de seu amigo era algo que deveria ser aceito. E mesmo sabendo que cedo ou tarde iria responder por isso, levantou-se de sua cama e atravessou os aposentos da ampla casa de treinamentos que era a sede dos furiosos representantes do Lobo.
                Ele se dirigiu até uma das várias portas internas e a abriu. Ali encontravam-se diversos tipos de peles, esculturas, peças artesanais feitas de madeira e cobre. Mas ao fundo dela, em uma parede estava exposta, tal qual um troféu a pele do urso abatida pelo filho de Jurimik.
                O líder retirou-a e enrolando a peça de forma que apenas a cabeçara do urso ficasse de exposta, e ele entregou-a a seu amigo.
                - Ele também pertence a Jekita. – lembrou Mulin.
                - Eu sei. Não esqueci dela.
                Desse modo, levando em seu colo o troféu de seu filho, Jurimik, saiu as pressas da Casa do Lobo, atravessando a aldeia e dirigindo-se a uma canoa que ele mantinha ancorada, na ponte ancoradoura do vilarejo. Jurimik agradeceu pela aldeia ainda estar adormecida, pois se as pessoas o vissem levando a pele do urso, com certeza haveria confusão e talvez com isso seu próprio filho poderia perder o pouco de respeito que ainda tinha pelo pai.
                Ainda bem que a aldeia estava adormecida. Pensou da mesma forma Mulin, que observava seu amigo partir de canoa. Ele sabia para onde ele estava indo, e ficou satisfeito. Talvez em sua volta o povo de Taporan tratasse Jurimik diferente, pelo menos até o próximo inverno quando tudo então voltaria ao normal. E seu amigo já estaria sendo novamente o que resolveu ser: um taverneiro.
                Quando Mulin fechou as portas da Casa do Lobo e retornou para seus sonhos jamais imaginou em quão bem havia agido naquela manhã. Pois seu concentimento não só aproximaria um pai de seu filho novamente, como iria despertar o desejo de viver a muito recluso dentro de seu melhor amigo.

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